sábado, 16 de abril de 2011

Koyaanisqatsi




É fato que as cidades sempre existiram, embora não apresentasse no passado a configuração das grandes cidades capitalistas. De acordo com o nosso entendimento percebemos a mudança na sociedade urbana que deixou de ser rural e passou a organizar-se no contexto urbano, ou seja, nas cidades. Com todos os elementos que vimos até aqui, ficou claro que as cidades concentram uma verdadeira mistura de diferentes referências culturais. A formação e crescimento das cidades estão associados ao seu poder de atração e pessoas de diversas partes que afluem para as cidades por diferentes motivos. São pessoas do entorno da cidade, da região, de outras regiões e até mesmo de outros países, como é o caso das metrópoles mundiais. Neste aspecto, a compreensão do cotidiano da cidade, suas práticas, referências e signos, são elementos essenciais para a nossa compreensão da cultura urbana, cultura esta que não está presa às raízes do passado, mas sim, uma cultura em constante transformação.
Segundo Paul Singer (1973), a cidade é o modo de organização (sócio) espacial que permite a classe dominante maximizar a extração regular de um mais-produto do campo e transformá-lo em garantia alimentar para sua sustentação e de um exercício que garanta a regularidade dessa dominação e extração. Posto dessa forma estabelece-se assim o que Henri Lefebvre (1969; 1999) denominou cidade política, ou seja, a cidade que mantém seu domínio sobre o campo (com a conseqüente produção é centrada no campo e a cidade, espaço não-produtivo privilegiado do poder político e ideológico, retira do excedente produzido no campo as condições de reprodução da classe dominante de seus servidores diretos, militares e civis, que a habitam.
A forma de viver foi modificada, os costumes da vida rural não podiam ser reproduzidos nos grandes centros urbanos. O modo de vida da cidade exige um comportamento urbano condicionado em uma série de procedimentos que implicam não apenas a forma de organização e orientação no espaço, mas também o deslocamento e o modo de viver. Os apartamentos, por exemplo, exigem não apenas uma adaptação ao estilo de moradia (quartos menores, banheiros e cozinhas minúsculos), como também afetam outras áreas do estilo de vida: elevadores que exigem tempo de espera, uso comum da água, distinção entre espaços comuns e privados, regras de convivência registrada em cartório civil etc. São regras que condicionam não apenas os espaços comuns públicos, mas também os espaços privados. Todas estas questões, embora subjetivas, condicionam a forma de viver das pessoas que precisam se conformar com as regras para viver em determinados espaços. E não é apenas no espaço de habitação que os critérios são estabelecidos, praticamente em todos os espaços urbanos sejam eles museus, cinemas, transporte público, praças, entre outros existe um código de conduta pré-estabelecido.
Essa seletividade – que se traduz em segregação especial – é a tradução especial no espaço de processo social cuja natureza é tanto econômica, fruto do desenvolvimento desigual e combinado, como de varias outras ordens. Segregação especial quase sempre é muito fácil de verificar-se de fenômeno visível a olhos nus. A cidade é repartida – toda ela – por delimitações tanto físicas quanto simbólicas. São bairros de elite, periferias carentes ou mesmo a mescla dos dois (complementares) mundos. Se a linha não é imaginaria, com divisões tácitas estabelecidas, por exemplo, pelo mercado, que impõe custo ao acesso e a proximidade, ou mesmo política, com a maior presença e circulação da policia, o recorte se faz visível através de demarcações territoriais por barreiras físicas. Advindas da construção de avenidas, viadutos, praças.  Tanto no filme koyaanisqatsi como nos artigos lidos fica claro que esse é um fato comum nas grandes cidades.
A questão fundante é entender - antes de saber como o capital constrói a cidade – por que esta é necessária para a acumulação de capital: por que a “urbanização do capital” partindo do mais geral e abstrato, Harvery escreve que “a organização especial de uma cidade é produzida pela interseção de fluxos de capital no mercado imobiliário com os requisitos da reprodução da força de trabalho e das relações de classe” (1989a: 12 – tradução livre).
Afirma ainda que a transição de uma cidade produzida por forças de fora lógicas da acumulação para uma produzida por forças legais a esta lógica ocorre quando a sobreacumulação surge como seqüência da produção e do consumo, quando crises se tornam manifestações das contradições internas do capitalismo e não de circunstâncias externas, como desastres naturais e guerras civis. Tal noção de crise é fundamental para a compreensão do pensamento harveyano sobre o desenvolvimento urbano, pois é parte da explicação de como e por que o capital produz o espaço construído da cidade.
A sociedade capitalista moderna consolidou a idéia de que as cidades são locais associados à modernidade, com todas as facilidades de uma vida de consumo e sucesso. A dicotomia campo-cidade vem sendo retratada no imaginário de todos como um contraponto entre o antigo e o moderno, o atrasado e o atual, o imóvel e o dinâmico. Existe a imagem da cidade que oferece mais empregos, mais condições de mobilidade social e econômica, mais possibilidade de sucesso e uma diversidade de serviços. Não é colocado em momento algum que esta acessibilidade está relacionada com o consumo, e, conseqüentemente, ao capital financeiro. Atraídos pelas possibilidades de melhores oportunidades nas cidades, milhares de pessoas migram nas suas próprias regiões ou intra-regiões em busca de realizar o sonho de uma realidade melhor.
Por outro lado, para os que vivem nas cidades, os problemas são muitos e reside em cada habitante o imaginário de uma qualidade de vida melhor, em cidades de pequeno e médio porte, sem o estresse do cotidiano causado pelo barulho, pelo trânsito e pela violência. Este panorama caótico das cidades modernas levou vários artistas a criarem suas obras, a partir de suas inquietações com o estilo de vida urbano e suas contradições. Um trabalho que exemplifica bem a preocupação com o modo de vida urbano é o documentário Koyaanisqatsi: Life out of balance, dirigido por Godfrey Reggio em 1983. O filme mostra através de um olhar muito particular, cenas da cidade aceleradas, apontando para a irracionalidade em nosso modo de viver. O título complicado do filme é uma palavra utilizada por tribos indígenas que significa “vida louca” e tem uma função importante na narrativa. Considerado uma obra prima visual com excelente trilha sonora, o filme nos leva a uma reflexão profunda sobre ações aparentemente banais do cotidiano das cidades.
Assim, verificamos que as estruturas da organização espacial também afetam as relações do tempo nas grandes cidades, modificando as duas categorias essenciais para o ser humano, que são concretizadas nas ações do cotidiano. O dia a dia das pessoas, principalmente nas grandes cidades, é um retrato da estrutura da sociedade e autores como Lefebvre (1991) o consideram tão importante que afirma que “quando as pessoas não podem mais  viver sua cotidianidade, então começa uma revolução. Só então. Enquanto puderem viver o cotidiano, as antigas relações se reconstituem” (LEFEBVRE, 1991, p.39). Investigar o cotidiano e a sua importância na vida moderna é essencial para compreendermos a lógica da vida urbana e seus impactos em nossa sociedade.
Assim, a questão urbana havia se transformado na questão espacial em si mesma, a urbanização passou a constituir uma metáfora para a produção do espaço social contemporâneo como um todo, cobrindo potencialmente todo o território nacional em bases urbano-industriais. Por outro lado, a politização própria do espaço urbano agora estendido ao espaço regional reforça preocupações com a qualidade da vida quotidiana, o meio ambiente, enfim, a reprodução ampliada da vida. O industrial passou a ser, pelo menos virtualmente, submetido a limitações do urbano e por exigências da reprodução. Neste contexto, a re-politização da vida urbana torna-se a re-politização do espaço social:
Por outro lado, há modulações inversas também. As cenas do lançamento do foguete que abrem e fecham o filme, são férias em câmera lenta, planos duradouros e melodias demoradas, ressonantes. O que chama atenção é a opinião é a onipresença do ritmo, imagético e sonoro, como dominante da experiência provocada por koyaanisqatsi. Modular nossa forma de ver o mundo parece ser definitivamente à estratégia sensorial deste filme, e não apenas pela dimensão do ritmo e do tempo: a escolha dos enquadrados é também diferenciada.
 A seleção das imagens humanas também é significativa: alem das explosões, demolições e maquinarias pesadas, há construções visuais figuradas – uma delas é enquadramento em close de uma família relaxando na praia, que assim como o plano do caminhão, lentamente se abre para um plano-geral que mostra que a “praia” ironicamente esta ao lado de uma usina atômica. Outra construção visual figurada é a montagem que compra metaforicamente a visão celeste de metrópole com um microchip.
De acordo com a análise dos textos e filme concluímos que, se as metrópoles atuais são centros privilegiados de produção e difusão de cultura e conhecimento e, nesse sentido oferecem potencialmente melhores oportunidades de vida a seus habitantes, são também centros de produção de problemas que desafiam a capacidade humana em resolvê-los. As soluções para questões como moradia, saneamento, saúde, transporte, emprego, proteção ao meio ambiente ainda não podem ser encontradas num horizonte previsível de tempo. As ações do estado ou da própria sociedade civil, nu sentido de melhorar as condições de vida nos grandes centros urbanos, são sempre pontuais e incapazes de dar conta do conjunto de problemas que afetam milhões de habitantes.
O enfrentamento de problemas tão abrangentes passa pela definição de padrões aceitáveis de qualidade de vida nas áreas metropolitanas que são locais de moradia e de trabalho de parcelas cada vez maiores da população mundial. Saídas para os atuais impasses apenas serão encontradas através da criação de mecanismos legais e instrucionais adequados de gestão urbana, do estabelecimento de políticas publicas voltadas para a satisfação de necessidades das maiorias e de ações efetivas de civil destinadas a ampliar e garantir o exercício dos direitos de cidadania.

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